• Autor: Manuel Rebanda & Associados, Sociedade de Advogados, SP, RL

  • Data: 07 de setembro de 2021

Dir-se-á ser uso ou costume, quase com foros de força vinculativa, perspectivar os inícios ou começos com um olhar imbuído de esperança. Esperança de renovação, de mudança, de progresso. Daí o êxtase colectivo, arvorado a dever cívico, que perpassa os corpos alegres nas passagens do ano; daí o dia inicial inteiro e limpo apregoado por Sophia; daí, também, as sucessivas aberturas do ano judicial, repletas de discursos institucionais, num dia em que se figura um reset simbólico do sistema de Justiça e se adivinham as transformações mais significativas do mesmo.

Não obstante o perigo de uma eventual violação deste dever colectivo de optimismo, o ano judicial que ora se abre nasce, à semelhança dos que o antecederam no passado mais recente, ensombrado pelas densas e tortuosas ramagens de um tempo polarizado. Se assim é, cabe-nos substituir a esperança dos incautos pela prudência dos céticos.

O primeiro trilho a desbravar na floresta cerrada que nos envolve é o que atravessa directamente aquela que foi elevada a questão magna destes nossos tempos e desta nossa Justiça: a corrupção.

De massa amorfa e sonolenta, no que às intricadas relações entre os poderes económicos e os poderes públicos diz respeito, o país passou a obcecado profeta da desgraça. Basta passar os olhos pelos títulos dos jornais, ouvir de passagem as intervenções parlamentares ou espreitar a mais breve entrevista de um qualquer sindicalista das Magistraturas para que o mais sereno dos leigos acorde pensando ter-se teletransportado para um país do terceiro do mundo.

Bem sabemos o potencial destrutivo de uma corrupção descontrolada. Bem sabemos o perigo que a mesma representa para um Estado de Direito democrático. Bem sabemos que um sistema judicial complacente perante aquela é o primeiro passo para o afastamento irrevogável dos cidadãos face à Justiça. Mas sabemos, também, que a conversão do combate sereno em obsessão desvairada, alimentada pela crença num optimismo antropológico, é uma estrada sem fim que nos leva inexoravelmente a paragens pouco justas. Que algumas das propostas mais ofensivas do nosso modelo liberal de sistema processual criminal tenham tido origem no seio daqueles que se supunha serem os seus guardiões – falamos, obviamente, da proposta de criminalização da ocultação de riqueza avançada pelo Associação Sindical dos Juízes Portugueses – só nos pode deixar de sobreaviso. E não nos deixa mais descansados o novo discurso adquirido do Presidente do STJ, o qual não se coíbe de atacar sem pejo as garantias conferidas pelo processo criminal aos arguidos, apelidando-as de excesso.

O que supra fica enumerado, assim como a crescente popularidade de medidas de delação premiada, a vertiginosa fulanização da Justiça ou as vozes que aqui e ali se vão levantando contra a autonomia do Ministério Público, obriga cada um de nós – Advogados, logo actores privilegiados do sistema de Justiça -, a erguer a voz e a relembrar a todos, poder político incluído, quais são os elementos essenciais e nucleares de um Estado de Direito liberal.

O combate contra a corrupção não é opcional – mas com ele e por ele não podemos sacrificar tudo o que se conquistou durante séculos e que constitui, hoje, a marca distintiva dos sistemas de convivência ocidentais, os quais convencionámos apelidar de Direito. Os direitos, liberdades e garantias são imponderáveis e, como ensina Agustina, o imponderável não merece ponderação.

Em tempo de aberturas, parece-nos igualmente prudente discutir as clausuras que se anunciam. E aqui é de chamar à colação a proposta aventada pelo Sr. Bastonário da OA, consistente em adicionar a obtenção de um grau de Mestre em Direito aos requisitos de ingresso no estágio de advocacia, o que se traduz em restringir ainda mais o acesso a uma profissão que se supunha liberal, mas que surge mais preocupada em assegurar os interesses corporativos de quem nela já milita.

Acresce a tudo isto o estado lastimável das retribuições devidas aos Advogados no âmbito do Sistema de Acesso ao Direito, retribuições essas que não só ofendem a dignidade daqueles, como dos próprios beneficiários. É tempo de alterar drasticamente este paradigma.

No que a alterações de paradigma diz respeito, não será também tempo de equacionar liberalizar certos aspectos da Advocacia, suprimindo as proibições estatutárias da angariação de clientes e da publicidade, proibições essas que com mais certeza recaem sobre os pequenos escritórios do que sobre as grandes sociedades, as quais as praticam com muito mais frequência?

Uma nota crítica mais, apenas, para referir o tempo da Justiça. A ideia consumada de que a Justiça portuguesa é absurdamente lenta converteu-se em senso comum. Como medidas de combate, têm-se sugerido insistentemente agilizações e flexibilizações processuais, com prejuízo para os direitos das partes envolvidas, assim como a proliferação de meios alternativos de resolução de litígios. Não mais do que meros paliativos, este tipo de acções só retarda o verdadeiro problema: a dramática falta de meios humanos no sector da Justiça. Só colmatando tal insuficiência poderemos progredir.

Para que se acabe num tom menos soturno, saudamos e apelamos a todos os Colegas, especialmente neste aparente fim de situação pandémica, a continuação do magnífico trabalho de defesa intransigente dos direitos e interesses dos cidadãos que a generalidade dos Advogados portugueses tem levado a cabo no seu percurso, com especial destaque para a acção incansável que desenvolveram num tempo de restrições à liberdade. É hora de prosseguir esse trabalho.