• Autores: Danilo Porfirio de Castro Vieira, Daniella Rebelo dos Santos Chaves e Marisa Antunes – Advogados

  • Data: 31 de março de 2021

O Direito de Família desprendeu-se do modelo tradicional e pré-moderno de instituição familiar, sendo apresentado aos princípios moderno-liberais de dignidade, autonomia da vontade e isonomia plural.

1. Modernidade e família

A Modernidade é um projeto infra-estrutural e superestrutural, que repercute no mundo da vida (dos valores), projeto intelectual de ruptura de uma ordem político-econômico-moral preexistente (pré-moderna), defendendo um novo modus vivendi. A Modernidade tem como tripé ideológico o emancipacionismo, a pluralidade e o secularismo.

O que se denomina de emancipacionismo é a reivindicação autenticidade individual e da autodeterminação do homem. A soberania individual como meio de sua autossatisfação, regida pela própria vontade e regras de juízo racionais, rompendo com padrões valorativos-morais comunitários e tradicionais.

Nesse sentido, os espaços políticos devem garantir a autenticidade, devem ser plurais, imprescindível para o exercício da autonomia. Logo, a pluralidade pressupõe, exige igualdade, num primeiro momento impessoalidade formal, como critério nivelador que permita o exercício da individualidade, do respeito aos méritos subjetivos e a proteção contra arbitrariedades advindas de pessoas, grupos, classes e até do próprio poder político institucional. O societarismo, como pressuposto organizacional do espaço plural, representa, portanto, uma ordem social sem hierarquia, intersubjetiva e contratual, estabelecida em laços de interesses e benefícios recíprocos.

No espaço societário exige na decisão política a razão pública, a secularidade como critério decisório. Os assuntos de interesse coletivo são apresentados e debatidos. As ações de homens livres e iguais, portanto, em uma sociedade plural serão regidas pela “ética da racionalidade”, desencantada, onde o dever é a manutenção da felicidade individual, inerente à natureza humana.

Neste sentido, a vida privada também sofre esse processo de ruptura, assimilando os preceitos da modernidade, em especial no Brasil, durante a segunda metade do século XX, alcançando a sociedade e o Direito brasileiros, reconhecidos em 1988, com a Constituição Federal vigente.

O Direito de Família desprendeu-se do modelo tradicional e pré-moderno de instituição familiar, sendo apresentado aos princípios moderno-liberais de dignidade, autonomia da vontade e isonomia plural.

O paradigma moderno de família apresenta como características a pluralidade, pois o matrimônio deixa de ser a única forma constitutiva de família; secularidade, a desvinculação a qualquer fundamento religioso; igualdade e democracia, pois o pátrio-poder é substituído pelo poder de família, com homens e mulheres tomando decisões em condição de igualdade, e desierarquizada nas relações entre pais e filhos; hetero ou homoparental, constituída por uniões entre pessoas de sexos distintos ou não; biológica ou socioafetiva, onde a filiação aos laços de sangue ou à adoção, mas a relação pública de afetividade; e dissolúvel em seus vínculos. A família sujeita-se a uma instrumentalização, estando esta a serviço de seus integrantes e realizaco das partes.

Com a “constitucionalização” do Direito Civil e consequentemente do Direito de Família, o princípio da Liberdade (art. 5. CF, art. 1.513 CC) torna-se o fundamento constitutivo, essencial para formação da organização familiar.

A liberdade, como autonomia constitutiva familiar, assume uma conotação principiológica própria, a afetividade. A afetividade como autodeterminação e autorresponsabilidade, opção voluntária, livre e consensual, pela vinculação solidária na criação de um núcleo familiar, seja na concepção de uma criança, nas três constituições de filiação (biológica, adotiva ou afetiva) ou na constituição de uniões solenes ou tácitas, em que os agentes constituidores assumem responsabilidade sobre seus efeitos. A publicidade da afetividade, a emergência do animus constitutivo familiar, é a socio-afetividade.

Neste sentido, a Família Matrimonial, de natureza religiosa, ritualística, litúrgica deixa de ser o único meio constitutivo familiar abrindo espaçoo para outros modelos como, dividindo espaço com união estável, união tácita e informal entre homem e mulher desimpedidos, que não necessita ser registrada, amparado no reconhecimento público da relação, como determina o artigo 1.723 do Código Civil.

2. União estável, seus requisitos e características

A Carta Magna de 1988, em seu art. 226, § 3º, outorgou à União Estável status de entidade familiar, perdendo, assim, o de sociedade de fato que anteriormente possuía (concubinato puro), sendo considerado pela Doutrina como cláusula geral de inclusão, não sendo, a partir de então, admissível a exclusão de qualquer entidade que preencha os requisitos da afetividade, estabilidade e ostensibilidade.

Anteriormente á CF de 1988, somente eram reconhecidas como entidades familiares aquelas decorrentes do casamento, porém, o regime jurídico constitucional reconheceu a juricidade das uniões tácitas pelo vínculo afetivo, reconhecendo as Uniões Estáveis como entidades familiares.

Posteriormente à promulgação da Constituição, a União Estável foi regulamentada pela lei 8.971/94 e, em sequência, pela lei 9.278/96. Por fim, o Código Civil de 2002 regulamentou integralmente a matéria, revogando os diplomas anteriores. Os primeiros marcos definidores foram estabelecidos pela lei 8.971/94, que constituiu os requisitos para reconhecimento da União Estável, inclusive com a fixação de tempo mínimo para a caracterização da união.

Também foi assegurado o Direito à alimentos e à sucessão do companheiro sobrevivente e suas condições. Por seu turno, na lei 9.278/96 houve a definição dos requisitos caracterizadores da União Estável mais próximos aos que atualmente estão estabelecidos, inclusive com a exclusão do requisito temporal para a caracterização da união e a possibilidade de constituição de União Estável por pessoas separadas de fato.

No mesmo diploma, houve o estabelecimento do regime de comunhão parcial de bens como regime legal para as uniões estáveis, havendo a possibilidade de determinação diversa, gerando a presunção juris et de jure de que os bens adquiridos na constância da relação foram adquiridos por esforço comum, garantindo a partilha igualitária dos bens, afastando a discussão acerca da efetiva participação de cada consorte.

Foi reconhecido também o Direito real de habitação do companheiro sobrevivente no imóvel destinado à residência da família, a possibilidade de conversão da União Estável em casamento e a fixação da competência das Varas de Família para o processamento e julgamento de matérias relativas à União Estável, assim como assegurou o segredo de justiça aos respectivos processos. Com relação aos requisitos para reconhecimento da União Estável, o Código Civil de 2002, dispõe em seu art. 1.723, que a União Estável é entidade familiar entre homem e mulher, caracterizada pela ‘convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.’ É sabido que, a partir, do RE 646.721, foi reconhecida como entidade familiar a União Homafetiva.

Porém, a equiparação total da União Estável ao Casamento somente ocorreu com regime jurídico estabelecido no Código Civil de 2002, especificamente com o RE 878.694, sendo estabelecidos os impedimentos para a sua constituição, ratificando as disposições de legislações passadas relativas à sucessão do companheiro, Direito aos alimentos, regime legal de bens e a possibilidade de conversão em casamento. Porém, foi silente quanto a necessidade coabitação, sendo que a jurisprudência atual majoritária estabeleceu a desnecessidade de coabitação dos companheiros para a caracterização da União Estável.

Importante salientar que no Código Civil de 2002 não há estabelecimento temporal para a caracterização da União Estável, contrariamente ao disposto no art. 1º, da lei 8.971/94 que estabelecia a duração mínima de 5 anos de relacionamento para a caracterização da União Estável ou a existência de prole em comum.

3. A natureza jurídica da união estável

Originalmente, dentro da proposta dos legisladores constitucionais e civis, em alinhamento aos preceitos da privacidade, intimidade, autonomia/afetividade e da mínima intervenção do Estado no Direito de Família, a União Estável devia ser por natureza um ato jurídico em sentido estrito.

A União Estável, como ato jurídico em sentido estrito, funda-se na lógica ponteana de manifestação de vontade (MIRANDA, 1956, p. 3), pois dentro dos ditames legais os agentes externam suas vontades por meio de comportamento humano, a intenção se mostra por ações, condutas e posturas de conhecimento e reconhecimento social, contrariamente à declaração de vontade, a mera explicitação por meio de uma afirmação instrumentalizada ou não.

Neste sentido, mesmo existindo instrumento público, em que as partes consensualmente expressem ou ratifiquem a existência da União Estável, a declaração não é suficiente para estabelecer a relação jurídica. A declaração, portanto, serve apenas como uma prova da existência da união e para disciplinar efeitos patrimoniais, como o regime de bens, conforme artigo 1.725 CC.

Há, porém, uma tendência crescente na doutrina e na jurisprudência que reconhece a União Estável como ato-fato jurídico.

O ato-fato, uma construção ponteana, é um fato humano, sem ser tratado como ato jurídico, pois se desconsidera a vontade humana (a inteção). A norma abstrai do fenômeno humano a volição que provocou sua criação. que possa existir em sua origem. O esvaziamento volitivo transforma o actus em factum, e assim será reconhecido no mundo jurídico (MIRANDA, 1999, p. 422).

4. As sociedades de fato no Direito português

A união de fato, no Direito português, é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos.

A lei 7/01, de 11 de maio, define o que é a União de fato e contempla as medidas de Proteção da mesma. A união de fato consiste, pois, numa convivência em comum em condições análogas às dos cônjuges, isto é, numa comunhão plena de vida que se traduz numa comunhão de mesa, leito e habitação, sendo esta, uma relação duradoura e não apenas ocasional.

O prazo de dois anos de convivência em condições análogas às dos cônjuges é condição necessária para que a união de fato previamente iniciada aceda à proteção jurídica emergente da lei 7/01 na sua versão mais recente, lei 71/18, de 31/12, mas para além disso, a lei exige ainda que não se verifiquem os impedimentos estabelecidos no seu artigo 2º, que correspondem quase na sua totalidade aos impedimentos dirimentes do casamento, previstos nos artigos 1.601. e 1.602. do Código Civil Português.

Assim, a lei estipula que são impedimentos dirimentes absolutos: a) idade inferior a dezesseis anos; b) demência notória, mesmo durante os intervalos lúcidos, e a decisão de acompanhamento, quando a sentença respetiva assim o determine; c) casamento anterior não dissolvido, católico ou civil, ainda que o respectivo assento não tenha sido lavrado no registo do estado civil.

O Código Civil português prevê como impedimentos dirimentes relativos, obstando ao casamento entre si das pessoas a quem respeitam, os impedimentos seguintes: a) parentesco na linha reta; b) relação anterior de responsabilidades parentais; c) parentesco no segundo grau da linha colateral; d) afinidade na linha reta; e) condenação anterior de um dos nubentes, como autor ou cúmplice, por homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o cônjuge do outro.

E quando se inicia então a união de fato? A partir do momento em que os sujeitos começam a viver em coabitação, não sendo necessário, para tal, o preenchimento de qualquer formalidade atestadora dessa situação. O artigo 2-A da lei 7/01 na sua versão mais recente, a lei 71/18, de 31/12 dispõe que, em princípio, a prova da união de fato faz-se por qualquer meio legalmente admissível, salvo se disposição legal ou regulamentar exija prova documental específica (1).

A terminologia “união de facto” foi atribuída pela legislação às relações informais de convivência, no que concerne à lei 135/99 de 28 de agosto, esta restringia a união a parceiros de sexo oposto, situação esta, alterada pela lei 7/01, de 11 de maio, que passou a admitir a união de fato entre pessoas do mesmo sexo.

No entanto, este fenômeno da “convivência” nem sempre teve reconhecimento jurídico, nem social.

Se recuarmos ao século XII, época era marcada pela influência da Igreja, sendo lhe reconhecida uma competência praticamente exclusiva na regulação da disciplina matrimonial, a única convivência em comum admitida, era a emergente do casamento-sacramento. O concubinato (estado de duas pessoas que vivem como cônjuges sem serem casadas) era visto como um pecado mortal de luxúria e, como tal, obviamente condenável.

Nas Ordenações Filipinas, previa-se a proibição de doações dos homens casados às suas concubinas e a punição criminal do concubinato de homem casado em determinadas circunstâncias, tendência que se manteve mesmo após a Revolução Liberal de 1820 e o surgimento do Código Penal de 1852 e do Código Civil de 1867.

Contudo, com a Constituição da República Portuguesa de 1976, deu- se um importante passo no reconhecimento jurídico das uniões de fato. O seu artigo 36 1 proclama o “Direito de contrair casamento e de constituir família em condições de plena igualdade”.

De forma a procurar adequar o Código Civil à nova Constituição, a Reforma de 1977 operou importantes alterações no domínio do Direito da família e do Direito das sucessões e é por ocasião desta, que se assiste, pela primeira vez, a uma referência expressa à união de fato no Código Civil Português, no artigo 2020, através da consagração de um Direito à alimentos ao membro sobrevivente da união de fato. No que concerne à paternidade, o artigo 1871, 1 alínea c), estipulou que esta presume-se quando, durante o período legal de conceção (o período em que terá sido concebido o filho/presunção legal), a mãe e o pretenso pai vivessem em união de fato. E nos termos do artigo 1911, 1, as responsabilidades parentais serão exercidas em conjunto por ambos os progenitores que vivam em união de fato, quando a filiação se encontre estabelecida relativamente aos dois (artigo 1901, 1, ex. VI do artigo 1911, 1). Nos casos de dissolução de união de fato por morte de um dos seus membros, as responsabilidades parentais pertencerão à parte sobrevivente (artigo 1904, ex. VI do artigo 1911, 1) e no caso de ruptura da união de fato, o artigo 1911, 2 remete para o regime do divórcio o exercício das responsabilidades parentais (artigos 1905 e 1906).

Em 1999, surgiu o primeiro diploma legal que se ocupou exclusivamente da proteção jurídica das pessoas que vivem em união de fato, sendo este a lei 135/99, de 28 de agosto, já referida supra, em 2001 surgiu a lei 7/01, de 11 de Maio, que revogou a lei 135/99 de 28 de Agosto.

As pessoas que vivem em união de fato nas condições previstas na presente lei têm Direito a:

a) Proteção da casa de morada de família, que no Direito brasileiro equivaleria ao instituto da “Proteção ao Bem De Família”, nos termos da presente lei;

b) Beneficiar do regime jurídico aplicável a pessoas casadas em matéria de férias, feriados, faltas, licenças e de preferência na colocação dos trabalhadores da Administração Pública;

c) Beneficiar de regime jurídico equiparado ao aplicável a pessoas casadas vinculadas por contrato de trabalho, em matéria de férias, feriados, faltas e licenças;

d) Aplicação do regime do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (naturais) nas mesmas condições aplicáveis aos sujeitos passivos casados (todos os companheiros com deveres e obrigações) e não separados de pessoas e bens (pois, na separação de pessoas e bens há alteração o regime de bens do casamento: as pessoas continuam casadas mas em regime de separação de bens. Deixam também de ter os deveres de viver juntas e de contribuir para a vida em comum, tendo efeito equivalentes a separação judicial no Brasil);

e) Proteção social na eventualidade de morte do beneficiário, por aplicação do regime geral ou de regimes especiais de segurança social e da presente lei;

f) Prestações por morte resultante de acidente de trabalho ou doença profissional, por aplicação dos regimes jurídicos respectivos e da presente lei;

g) Pensão de preço de sangue (equivaleria ao benefício de pensão por morte) e por serviços excepcionais e relevantes prestados ao País, por aplicação dos regimes jurídicos respectivos e da presente lei.

Hoje em dia a união de fato já é digna de proteção pelo ordenamento jurídico português, pese embora os efeitos ainda não sejam os mesmos do casamento.

O que se observa é que no Direito português, a fluidez relacional da união estável é sujeita a um critério de freios e contrapesos, mas claro, exigindo a coabitação e a o tempo mínimo de convivência, afastando discussões sobre distinção com namoro ou co-parentalidade.

Esse afrouxamento de critérios para o reconhecimento da união estável no Brasil, acaba por transformar em um instituto jurídico instável, sujeito a interpretações diversas e insegurança jurídica, conforme aponta a professora Regina Beatriz Tavares da Silva, em seu instigante texto “A frouxidão dos requisitos da união estável e a equiparação de seus efeitos aos do casamento no Direito Brasileiro”, acessível no Tratado da União de Fato, recentemente lançado pela editora Almedina do Brasil, em parceria com a ADFAS.

No Direito português, contrariamente ao Direito Brasileiro, há cautela quanto a equiparação aos efeitos do casamento, pois são institutos jurídicos com natureza distinta (manifestação versus declaração solene de vontade), viabilizando assim o que é imprescindível à sociedade: certeza e estabilidade.

No sistema jurídico português não se experimenta, como no Brasil, a excessiva judicialização e “‘ginásticas’ argumentativas das mais complexas”, dispondo de falsas polêmicas e problemas, como a distinção do adultério e união paralela, da distinção de união estável e namoro (qualificado) e validade do contrato de namoro ou do contrato de co-parentalidade, como disposto no Tratado de União de Fato.